O MUNDO ÀS AVESSAS

O MUNDO ÀS AVESSAS

Liguei para uma central de atendimento para cancelar um serviço. Como é de praxe, ouvi argumentos e propostas para que eu desistisse do cancelamento. Nada de novo. Inesperado foi perceber que do outro lado estava alguém com muito boa vontade e atenção, usando um tom de voz adequado e fazendo rolar uma conversa alegre e descontraída.

Me senti importante e a surpresa me desarmou. Decidi dar uma nova oportunidade. Vai que a central de atendimento contamina a prestação de serviços contratados. 

Pena que foi uma exceção. A ausência de empatia é o padrão. A prestação de serviços falha e o atendimento trata a ocorrência com tanta naturalidade, que só posso concluir que fui mais uma vítima diante de milhares de falhas. 

Acompanho nos noticiários a aventura da população dos grandes centros urbanos ao utilizar os serviços de saúde, transporte, mobilidade e segurança. Ninguém tem a noção que aqueles problemas reportados refletem, mesmo que indiretamente, em nossas vidas? Uma jornada dessa no início e no final do dia reflete na produtividade do indivíduo. Viver aquilo várias vezes na semana, certamente desanima, deprime e revolta. 

Para piorar um pouco o quadro, os jornalistas entrevistam os responsáveis. Lamentável ouvir o que foi realizado sem mostrar o que seria necessário; um desafio à inteligência do povo quando comparam o caos atual com a calamidade do passado; é desesperador saber que a regra do jogo é apontar culpados e nunca tentar encontrar solução.

Dói o meu ouvido quando um “engenheiro de tráfego” solta uma frase do tipo: “o trânsito desta cidade não tem jeito”. Esse indivíduo aceita ser remunerado para fazer algo que não favorece ninguém? Que tal colocar nessa função alguém que queira um amanhã diferente do hoje? 

Meu consolo é que sou um privilegiado. Enxergo e escuto. Assim sendo, terei que me acostumar com:

  • A culpa é do sistema que insiste em sair do ar. “O figura” que desenvolveu ou que operou o sistema é um herói; 
  • É impossível elaborar planos preventivos e/ou contingenciais que ao menos reduzam o impacto dos eventos climáticos “naturais”;
  • Aumento de demanda é um problema de comportamento humano. Ninguém assistiu a aula que ensinou tendências, business intelligence etc.

A falta de cuidado está naturalizada. Seja no serviço público ou nas prestações de serviços privados, não reconhecer a falha significa que não há problema a ser solucionado. Não criar indicadores que representem a expectativa do usuário, significa não gerenciar.

Lembro das placas “estamos a n.nnn dias sem acidente”. Inspirador, né? Na contramão, temos indicadores que enaltecem a incompetência:

  • “Hoje estamos com 300 km de engarrafamento”. Isso é motivo de orgulho?

Que tal medir a fluidez do trânsito com um gráfico que apresente a evolução do tempo médio no Eixo Norte-Sul? 

Dashboard de qualidade não é obra de arte que fica bonito na parede. Melhor seria um painel sem graça, mas dando transparência, apresentando metas, ocorrências mais frequentes e planos de melhoria. É absurdo isso?   

Hoje a moda é falar de inteligência artificial, análise de dados, inovação, e outras tantas “ondas” da era moderna. Esquecemos a qualidade, o black belt, six sigma etc.? Não estou propondo uma volta ao passado, mas sim uma reflexão para evolução e até avaliar se não estamos na contramão. Observem que: 

  • Penaliza-se quem chega com antecedência cobrando mais tempo de estacionamento ou outras maldades; 
  • Justifica-se o estacionamento proibido com “é só um minutinho”. Certamente a quantidade de pessoas transtornadas com esse ato, multiplicado pelo “minutinho medido no relógio” representaria melhor o mau humor;
  • Quando alguém não paga uma conta em dia, cobra-se multas, juros e despesas. Mesmo compreendendo que não se deva estimular a inadimplência com descontos, parece mais lógico um “castigo” como a participação obrigatória em um programa de educação financeira; 
  • Uma pessoa que comete uma irregularidade no trânsito nas poucas vezes que tira o carro da garagem deve ter a mesma penalidade que um motorista frequente?

Encerrando, mas não concluindo, gostaria de sugerir alguns momentos de reflexão. Vivemos muito mais contradições do que coerências. Somos vítimas das atitudes de empresários, governantes, legisladores e toda a sorte de pessoas vestidas de poder que atuam contra o propósito de suas funções. Escolhemos pessoas que nos representem ao invés de escolher processos que nos levem ao bem-estar. Cooperamos mais com quem está mais próximo para pedir ajuda, sem pensar que tem aqueles que nem conseguem mais pedir. 

Por algum tempo avaliei que era preguiça mental, ou egoísmo, ou ainda ignorância. Mas me parece mais correto entender que estamos menos esperançosos a cada dia. Precisamos acreditar que o bem-estar está ao nosso alcance se fizermos uma opção: Agir como o atendente que citei no início, que acreditou que seu trabalho produziria resultado, que valorizou o seu interlocutor sem falsos exageros e que foi absolutamente honesto ao reconhecer que o problema estava do lado da organização que ele representava. Tenho certeza de que ele é muito mais feliz que muitos que estão aí pelos cantos reclamando da falta de perspectiva.

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